sexta-feira, 18 de junho de 2010

Michele Sato





A EDUCAÇÃO AMBIENTAL TECIDA PELAS TEORIAS BIORREGIONAIS
Michèle Sato

Imaginemos uma localidade rural, distante dos ruídos das fábricas, fumaças de
poluição, outdoor do MacDonald, ou atropelamentos marcados pela inabilidade humana em se promover atenção à solidariedade no trânsito. Há um recanto dos pássaros, de tuiuiús com ninho na copa de uma árvore, sofrendo pela envergadura de suas grandes asas e que, inevitavelmente, esbarram nos primeiros fios elétricos que trazem a modernidade em uma região distante dos modos de vida da sociedade branca, capitalista e ocidentalizada em sua urbanidade. Esta região não está esquecida, seus habitantes fazem parte dos números que o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) contabiliza para aferir o índice de Desenvolvimento Humano (IDH), através de somente três indicadores: longevidade, escolaridade e Produto Interno Bruto (PIB). Seus habitantes recusam ser excluídos da “qualidade de vida” e, teimosamente, lutam para que suas vidas
sejam narradas - talvez para eles, Gabriel García Marques tenha razão: a vida não é apenas para ser vivida, mas deve ser lembrada e eloquentemente narrada para que não se perca o fio da história.

A pequena narrativa deste texto é sobre uma comunidade chamada Mimoso, que carrega sua trilha na carne e no coração de seus habitantes. Vilarejo pobre, sua dor se mistura com o canto dos cardeais, nos reflexos solares nas águas da baía Mariana, da verde gramínea que originou seu nome, e nas espécies vivas que preenchem o alvorecer da esperança. Mimoso é também um local de seres encantados, com símbolos recriados pela memória viva de geração a geração, e também de padroeiros, santos e milagres que permitem que o local jamais seja
abandonado. No mosaico biorregional Pantaneiro, uma mítica de lendas e “causos” alia-se à espiritualidade, revelando padroeiros à pesca, ao tempo bom, à terra fértil ou ao anúncio da chuva. Minhocão, Pé de garrafa, Tchá Mariana e outros seres encantados habitam o Pantanal, anunciando que as expressões culturais se aliam à dinâmica da natureza.

As mulheres rendeiras já abandonaram a concorrência com as redes têxteis das indústrias, que oferecem preços mais baixos na desleal competição de mercado. Os homens já não vivem mais da pesca e os casamentos consangüíneos estão cada vez menos freqüentes. O centro da comunidade é a escola Santa Claudina, que recebeu este nome em homenagem à mãe do então herói regional, Cândido Mariano Rondon. Mimoso não quer sucumbir ao processo desintegrador, e os conflitos diários, entre a fome e os impactos ambientais, clamam pela sobrevivência digna das empoeiradas prateleiras com fotografias antigas, registros amarelados na tirania do tempo que se tornam labirintos sem fronteiras. Na parede da sala, fotografias de artistas se misturam em recortes de revistas, entre Xuxa, Brad Pitt, aviões, futebol e uma variedade de santos e santas que buscam em sua mítica, seu jeito próprio de tecer esperanças.

É neste espaço da casa que a mítica pantaneira revela seus segredos, mas longe de ser um santuário intocável, a exemplo do seu status de “patrimônio da humanidade”, a santidade semiológica se entrecruza com a exuberância ecológica, revelando o sentido etimológico do santuário: é como se as raízes das árvores e da vegetação pantaneira mergulhassem na terra com sua copa tocando o céu. E no meio deste espaço, concretiza o território intermediário da luta humana protegida pelas suas divindades.

Seria um equívoco acreditar que a religiosidade da biorregião mascara a luta
política explícita na vida mimoseana. Inserida em projetos de Educação Ambiental (EA),Mimoso se recusa a aceitar o inexorável movimento da globalização, projetada na homogeneidade da solidariedade absoluta entre todos os povos, da eliminação das diferenças e da pulsação que segrega o local do global. Heidegger diria que entre o desejo do ideal e o concreto do real há um enorme abismo que necessita ser superado. A mudança de uma sobrevivência predatória a uma vida ética requer instrumentos e educação ainda em plena construção local. Isso não implica, entretanto, desprezar a cidadania planetária, mas antes, institui-se o desafio de sermos realmente justos em construir a requerida cidadania local.
Compreendemos que na riqueza das experiências realizadas no projeto comunitário de EA, há também o paradoxo da estagnação. Se alguns olhares percebem o conhecimento indígena ou popular como “tradicionais”, ou “primitivos”, é preciso problematizar que esta assimetria esconde uma hierarquia perversa da superioridade de quem estabelece e determina a contemporaneidade. A contração do mundo, sob a égide dos controles dominadores, “esconde a riqueza das experiências sociais do mundo... pois as entidades ou experiências específicas estão aprisionadas em escalas que as incapacitam serem alternativas credíveis na racionalidade universal e dominante” (SANTOS, 2000, p. 49).
Assim como as correntes filosóficas gerais, o biorregionalismo também tem suas várias características. Historicamente, ele nasceu nos Estados Unidos, em plena efervescência da contracultura, no contexto das comunidades alternativas da Califórnia, que buscaram um estilo alternativo de vida e se consagrou como parte da chamada “Ecologia Profunda” (ALEXANDER, 1996). Em oposição à ausência de sensibilidade ecológica, centralizada na espécie humana (antropocentrismo), a ecologia profunda reivindica pela ética da vida em sua plenitude (biocentrismo).

Alguns autores acreditam que o amor pela terra de certas comunidades não foi fruto do movimento ecológico marcado pela contracultura, mas pela ausência de opção na vida urbana que rege o princípio do desenvolvimento. Sua trajetória, assim, não foi em linha reta - enquanto alguns ainda buscam esta alternativa de vida, através da permacultura, hábito alimentar natural, ou modo de vida menos consumista, outros trilharam por um posicionamento mais político da história local, interpretando culturas e comunidades sem negligenciar o ambiente natural circundante das regiões. É nesta segunda vertente que adentramos no mundo da Educação Ambiental (EA).

Rompendo com a tradicional visão determinista que condena certa região, a opção
filosófica é tentar perceber um local com características geográficas e biológicas inscritas numa história de vida. No cenário da globalização, o biorregionalismo é uma tentativa, entre tantas outras possibilidades, de construir identidades fora dos centros hegemônicos, na relevância das lutas políticas em locais e territórios singulares. As metanarrativas pulverizaram as diferenças, dando homogeneidade ao todo e suas partes. A Educação Ambiental inscrita no biorregionalismo reforça que a experiência social é variada e múltipla, e para além do veredicto das ciências, do controle econômico ou da exclusão social, pretende buscar alternativas que possibilite o não desperdício das vivências locais. É a esperança de escrever um texto cultural (GEERTZ, 2002), vestido de farrapos ou a moda de uma era, mas que contemple a etnografia sem medo da solidão, do desconforto físico ou da paciência em encontrar o fascínio cultural escrito na natureza.
Na ebulição deste século XXI, o que prevalece não é a ingenuidade da intocabilidade de santuários, mas a constatação de que as disparidades aumentam cada vez mais, pois os donos do poder não percebem “uma Terra solidária”, nem um “futuro comum” à construção do “desenvolvimento sustentável”. A injustiça social e ambiental no Brasil é fruto de um olhar imediatista e individualista das classes dominantes que operam mecanismos de exclusão social.
A Rede Internacional de Justiça Ambiental (ACSERALD, 2004) compreende a condição de existência política tendenciosa, cujos danos ambientais sempre afetam os grupos de trabalhadores, as populações de baixa renda, os segmentos raciais discriminados e as parcelas marginalizadas que são mais vulneráveis da chamada cidadania.No caso específico de Mimoso, que resguarda ainda suas expressões culturais aliadas à beleza natural, os grandes impactos ambientais asseveram drasticamente a população. A apropriação elitista de espaços e territórios exige a construção de uma nova temporalidade histórica que denuncie as disparidades e a concentração de renda somente nas mãos dos controladores do poder. Face às injustiças ainda pulsantes fortes em Mimoso, a EA assumida no interior do Grupo Pesquisador em Educação Ambiental (GPEA) tem o compromisso de construir alternativas de vida digna, primordialmente no âmbito local, pela ousadia da invenção pedagógica capaz de criar e recriar movimentos de esperanças à tessitura da cidadania nacional.

O resgate às lendas e “causos” da localidade, bem como as narrativas de vida das pessoas evidenciaram o reconhecimento de que todo saber é igual por direito e a
formação do grupo pesquisador, entre a comunidade e a universidade, foi logo
possível. Adentrando nas oficinas sociopoéticas, teatros, expressões artísticas e
a aprendizagem com o corpo todo possibilitaram a formação de uma comunidade de aprendizagem que interpretava a dimensão ambiental na reinvenção educativa do fiar e desfiar democracia, entre os fóruns de discussões e reuniões de planejamento aos pequenos projetos comunitários. Estavam também presentes as reuniões de avaliação, da superação da premiação e do castigo para uma tessitura do reconhecimento dos potenciais e sua sustentabilidade, bem como a autocrítica em desvendar as falhas e buscar as táticas de superação. E, obviamente, as
festas comunitárias estavam muito vivas, na metodologia etnográfica que descarta a hierarquia de um festejo ao aconchego de um grupo pesquisador.
O que se descortinava no palco era a vontade de tecer indicadores que se situassem além da economia, e que, sobremaneira, abandonassem a visão paternalista de “geração de renda”, mas que se inscrevesse na ousadia da transformação. O sonho cidadão era construir uma linha de dignidade, que também pode ser interpretada como “não obedecer a nenhuma lei que não seja instituída por ele mesmo” (Kant apud ABBAGNANO, 1998, p.276). No marco da cidadania existencialista, que projeta a vida como meta, nunca apenas como meio, a linha de dignidade visa reduzir o espaço ambiental, estabelecendo um teto nas explorações da biorregião e um piso mínimo de vida digna.

As esperanças devem fluir por dentro da EA e animá-la, revelando que é possível aferir dignidade através do projeto de cidadania.Foi concordando com a frase de Jean Pierre Leroy (2005, p.24), que afirma que “a perda das raízes e da identidade é muito ligada à perda de uma relação com o meio ambiente”, que iniciamos compreendendo a percepção ambiental da comunidade, e vagarosamente, estamos construindo indicadores sociais qualitativos que possam oferecer uma identidade na “qualidade de vida” da biorregião. Para além das duvidosas orientações internacionais, a noção de dignidade aproximou-se da cidadania, na tessitura conceitual da linha de dignidade da biorregião.

Na contemplação desta paisagem, bem aquém de um santuário ecológico, é possível que a fúria venha à tona de tempos em tempos, que pode ser sucumbida temporariamente na cotidianidade, mas que jamais consegue ser esquecida. Entretanto, os raios solares que ardem como fogo nas águas pantaneiras podem transmudar a força da indignação em um poder que pode nos mover à concreção dos nossos desejos. Foi no território da luta e da vontade que emana da gente de Mimoso, que aprendemos a história cultural do espaço recortado por fitofisionomias próprias, mas com gana política inscrita na mesma temporalidade. Mimoso é, assim, um outro nome da cidadania.



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